RIO - Milhares de servidores públicos estaduais e municipais estão com suas aposentadorias ameaçadas pela insolvência dos institutos de previdência aos quais se associaram. Segundo o governo, existem duas mil entidades administrando a poupança de dez milhões de funcionários em todo o país que devem fechar as contas deste ano com um déficit somado de R$ 78 bilhões.
Esse buraco financeiro no Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) foi cavado por má gestão, principalmente com o desvio de recursos para pagar despesas e financiar investimentos governamentais. O rombo já compromete a situação financeira de uma dezena de estados e 186 municípios — eles agora travam uma batalha judicial com o Ministério da Previdência para continuar a receber recursos da União e ter acesso ao crédito em bancos públicos.
“Os problemas já estão começando a acontecer”, disse Leonardo José Rolim Guimarães, secretário Nacional de Políticas de Previdência Social, em depoimento no Senado na semana passada. “Acreditamos que isso possa ter um impacto muito grande para o país, num futuro muito breve. Talvez, com consequências similares ou maiores do que tivemos na década de 90 com a crise da dívida dos Estados, quando a União teve que socorrer vários que estavam às portas da quebradeira.” Otoni Gonçalves Guimarães, diretor do Departamento dos Regimes de Previdência no Serviço Público, completou: “Não dá mais para se falar em tolerância com regimes sem perspectiva de sustentabilidade no longo prazo e também com gestão sem qualificação técnica e profissional”.
Pelas contas do ministério será necessário aumentar impostos para cobrir um déficit atuarial estimado em R$ 3,5 trilhões em 75 anos, o que levou a senadora Katia Abreu (PMDB-TO) a pedir a abertura de uma investigação na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado.
Comprovaram-se fraudes de R$ 2 bilhões cometidas por governantes e gestores de 117 institutos. Na maioria dos casos, eles estão envolvidos com empresas financeiras que, oito anos atrás, foram flagradas na lavagem de dinheiro para políticos beneficiados no caso Mensalão — de acordo com documentos da Justiça Federal, do Banco Central, do Tribunal de Contas da União e dos Ministérios da Fazenda e da Previdência.
Negócios com títulos “podres”
O dinheiro da seguridade social dos servidores foi aplicado em fundos privados compostos por títulos sem valor real no mercado, emitidos por empresas e bancos sem rentabilidade, falidos, em recuperação judicial ou em liquidação extrajudicial. Governantes e gestores recebiam comissões de 3% sobre o valor da operação para ordenar a compra de papéis indicados por “consultorias”. Pagava-se até o dobro do valor de face dos títulos “podres”, com prazo de carência de quatro anos para resgate. O dinheiro entrava nas contas de uma rede especializada em lavagem no eixo Brasília-Rio-São Paulo, com sucessivos saques em espécie.
Foi assim que a caixa de previdência dos servidores do Estado de Tocantins, Ingeprev, se tornou proprietária de 40% das ações de um grupo de churrascarias. O Previqueimados, de Queimados (RJ), virou cotista de uma empresa de limpeza. E a prefeitura de Angra dos Reis (RJ) investiu R$ 6 milhões em um fundo composto por títulos do Banco BVA, liquidado em outubro do ano passado.
As perdas acontecem em ritmo acelerado. Na sexta-feira 31 de agosto do ano passado, por exemplo, 23 institutos de previdência estadual e municipal possuíam R$ 335,6 milhões aplicados em um mesmo fundo de renda fixa (Elo). Em dois meses os papéis comprados perderam R$ 51 milhões em valor. Ou seja, o patrimônio financeiro desses institutos foi dilapidado nas oito semanas seguintes na velocidade de R$ 850 mil por dia — média de R$ 34,5 mil por hora, ou R$ 590 por minuto.
Essa engenharia financeira levou o Ingeprev, de Tocantins, a investir R$ 270 milhões e perder R$ 70 milhões entre agosto e outubro do ano passado. O fundo mantido pelo governo de Roraima aplicou R$ 126,5 milhões e ficou com prejuízo de R$ 33,3 milhões. Foram significativas, também, as perdas dos institutos de previdência de Manaus (AM), Campinas (SP), Goiania (GO), Teresina (PI), Macapá (AP), Porto Velho (RO) e Serra (ES), que investiram a soma de R$ 472 milhões em títulos “podres”, sobretudo do Banco BVA, liquidado 60 dias depois. Parte das aplicações foi engedrada pela Invista Investimentos Inteligentes, do grupo empresarial controlado por Fayed Antoine Traboulsi.
Traboulsi foi personagem do inquérito do Mensalão, na lavagem de dinheiro transferido de fundos de pensão de empresas estatais para parlamentares aliados ao governo Lula. Ele integrava uma rede especializada em “operações financeiras atípicas”, na definição do Banco Central, em cooperação com corretores como Lúcio Bolonha Funaro e José Carlos Batista. Sócios da Garanhuns Empreendimentos, eles foram condenados por lavar parte do dinheiro do Mensalão destinado a parlamentares do então Partido Liberal (PL), atual Partido da República (PR), mas suas penas foram suspensas porque colaboraram nas investigações.
A CPI dos Correios responsabilizou duas dezenas de empresas financeiras por transferências de dinheiro do caixa de seis fundos de pensão estatais (Refer, Portus, Real Grandeza, Centros Nucleos e Sistel) para os bolsos de parlamentares aliados ao governo. Entre as corretoras estavam a Euro, a Royster e a Cingular, de Funaro e Batista.
Modelos no papel de corretoras
Essas empresas agora foram flagradas na lavagem de lucros das “operações atípicas” realizadas com institutos de previdência estaduais e municipais. Há outras também investigadas no caso Mensalão, como Diferencial, Quantia, Brasil Central e Stockolos Avendis. Em alguns casos, atuaram em cooperação com o grupo Traboulsi, que usava modelos como negociadoras. Foram flagradas na lavagem de lucros dos negócios realizados com institutos de previdência estaduais e municipais: “Não se intimidaram com a exposição de seus nomes e técnicas de atuação, sendo novamente identificados na presente investigação, desta feita sangrando os cofres dos RPPS (Regimes Próprios de Previdência dos Servidores)”, escreveu o juiz Cândido Ribeiro, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao justificar em agosto passado as primeiras ordens de prisão.
Dias atrás, técnicos do Ministério da Previdência e do Tribunal de Contas da União se reuniram para avaliar a dimensão da insolvência da previdência dos servidores. O tribunal documentou a escassez de informações confiáveis, inclusive de órgãos federais.
Se as contas espelhassem a realidade contábil, afirma o tribunal em relatório sobre o Balanço Patrimonial da União de 2012, “haveria grande impacto no patrimônio líquido (da União), que deixaria uma situação positiva de R$ 761 bilhões (em 31/12/2012), para apresentar um passivo a descoberto de R$ 345 bilhões”.